Por Tim O'Neill
O
meu interesse pela ciência Medieval foi largamente estimulado por um
livro. Por volta de 1991, quando eu era um aluno de pós-graduação
empobrecido e frequentemente esfomeado na Universidade da Tasmânia, dei
com uma cópia do livro de Robert T. Gunther com o título de "Astrolabes
of the World" - 598 páginas-fólio de astrolábios islâmicos, Medievais e
Renascentistas meticulosamente catalogados, cheio de fotos, diagramas e
listas estreladas, bem como uma vasta gama de outro tipo de informação.
Dei
com ele, e de forma bem apropriada e não incidental, nos "Astrolabe
Books" de Michael Sprod - no piso de cima de um dos lindos e antigos
armazéns de arenito que se encontram alinhados num lugar com o nome de
"Salamanca Place" (...). Infelizmente, o livro custava $200, o que por
aquela altura era o equivalente ao que eu tinha para gastar durante o
mês inteiro.
Mas
o Michael já estava habituado a vender livros a estudantes
empobrecidos, e devido a isso, não almocei e fiz um adiantamento de $10
e, durante vários meses, regressava todas as semanas para dar o mais
que podia até que eventualmente consegui levá-lo para casa, embrulhado
em papel castanho duma forma que só as livrarias Hobart se preocupam em
fazer. Há poucos prazeres mais gratificantes do que aquele em que se
tem nas mãos o livro que há já muito tempo se quer ler.
Tive outra experiência igualmente gratificante quando, há algumas semanas atrás, recebi uma cópia do livro de James Hannam com o título de "God's Philosophers: How the Medieval World Laid the Foundations of Modern Science" ["Os Filósofos de Deus: Como o Mundo Medieval Estabeleceu os Fundamentos da Ciência Moderna"].
Há
já alguns anos que brinco com a ideia de criar um site dedicado à
ciência e à tecnologia Medieval como forma de tornar públicas as mais
recentes pesquisas em torno do tópico, e também para refutar os mitos
preconceituosos que caracterizam esse período como uma Idade das Trevas
repleta de superstição irracional. Felizmente, hoje posso riscar essa
tarefa da minha lista porque o suberbo livro de Hannam fez esse
trabalho por mim, e em grande estilo.
A Idade das Trevas Cristã e Outros Mitos Histéricos
Um
do riscos ocupacionais de se ser um ateu e um humanista secular que
divaga por fórums de discussão é o de encontrar níveis assombrosos de
ignorância histórica. Gosto de me consolar com a ideia de que muitas
das pessoas que se encontram em tais fórums adoptaram o ateísmo através
do estudo da ciência, e como tal, mesmo que essas pessoas tenham
conhecimentos avançados em áreas tais como a geologia e a biologia, o
seu conhecimento histórico encontra-se parado no nível secundário.
Geralmente, eu costumo agir assim porque a alternativa é admitir que o
entendimento histórico médio da pessoa comum, e a forma como a História
é estudada, é tão frágil que se torna deprimente.
Logo,
para além de ventilações regulares de mitos cabeludos tais como o da
Bíblia ter sido organizada no Concílio de Niceia, ou do enfadonho
disparate cibernético de que "Jesus nunca existiu!", ou também do facto
de pessoas inteligentes estarem a propagar alegações pseudo-históricas
que fariam com que até Dan Brown suspirasse com escárnio, o mito de que
a Igreja Católica causou a Idade das Trevas, e que o Período Medieval
foi um vazio científico, é regularmente empurrado com um
carrinho-de-mão ferrugento para a linha da frente como forma de o expor
por toda a arena.
O
mito diz que os Gregos e os Romanos eram sábios e pessoas racionais que
amavam a ciência, e que estavam à beira de fazer todo o tipo de coisas
maravilhosas (normalmente, a invenção de máquinas a vapor de grande
porte é inocentemente invocada) até que o Cristianismo chegou. O
Cristianismo baniu, então, todo o conhecimento e todo o pensamento
racional, e inaugurou a Idade ds Trevas.
Durante
este periodo, diz o mito, a teocracia com punho de ferro, apoiada pela
Inquisição ao estilo da Gestapo, impediu que fosse feita qualquer
actividade científica, ou qualquer actividade de investigação, até que
Leonardo da Vinci inventou a inteligência e o Renascimento nos salvou a
todos das trevas Medievais.
As manifestações cibernéticas desta ideia curiosamente pitoresca, mas aparentemente infatigável, variam de quase atabalhoadas a totalmente chocantes, mas a ideia continua a ser uma daquelas coisas que "toda a gente sabe", e que permeia a cultura moderna.
Um episódio recente da série "Family Guy" exibiu
o Stewie e o Brian a entrar num mundo alternativo futurista onde,
foi-nos dito, as coisas eram avançadas desse modo porque o Cristianismo
não havia destruído o conhecimento, dado início à Idade das Trevas, e
impedido o desenvolvimento da ciência. Os escritores não sentiram a
necessidade de explicar o significado das palavras de Stewie porque
assumiram que toda a gente sabia.
Cerca
de uma vez a cada 3 ou 4 meses em fórums tais como RichardDawkins.Net
temos algumas discussões onde sempre aparece alguém a invocar a "Tese do Conflicto".
Isso evolui para o normal ritual onde a Idade Média é retratada como um
deserto intelectual onde a humanidade se encontrava algemada pela
superstição e oprimida pelos cacarejadores asseclas da Velha e Maligna
Igreja Católica.
Os
velhos estandartes são apresentados na altura certa: Giordano Bruno é
apresentado como um mártir da ciência, nobre e sábio, e não como o irritante místico "Nova Era" que ele era.
Hipatia é apresentada como outra mártir deste tipo, e a mitológica
destruição da Grande Biblioteca de Alexandria é falada num tom
silencioso, apesar de ambas estas ideias serem totalmente falsas.
O
incidente em torno de Galileu é apresentado como evidência dum
cientista destemido a opor-se ao obscurantismo científico da Igreja,
apesar do incidente ter tanto a ver com a ciência como com as
Escrituras. E, como é normal, aparece sempre alguém a exibir um gráfico
(ver mais embaixo), que eu dei o nome de "A Coisa Mais Errada de Sempre da Internet",
e a mostrá-lo triunfalmente como se o mesmo fosse prova de algo que não
do facto da maior parte das pessoas serem totalmente ignorantes da
História, e incapazes de ver que algo como "Avanço Científico" nunca
pode ser quantificado, e muito menos pode ser representado visualmente
num gráfico.
Não
é difícil pontapear este disparate e reduzi-lo a nada, especialmente
porque as pessoas que o apresentam não só não sabem quase nada de
História, como também tudo o que fazem é repetir ideias estranhas como
esta que eles viram em sites e livros populares. Estas alegações entram
em colapso mal tu as atacas com evidências sólidas.
Eu gosto de embaraçar por completo estes propagadores perguntando-lhes que me apresentem um - um só - cientista que foi queimado, perseguido, ou oprimido durante a Idade Média por motivos científicos.
Eles são incapazes de me apresentar um único nome. Normalmente, eles
tentam forçar Galileu de volta à Idade Média, o que é engraçado visto
que ele foi contemporâneo de Descartes.
Quando lhes é perguntado o porquê deles serem incapazes de apresentar um único nome dum cientista que tenha sofrido por motivos científicos,
visto que aparentemente a Igreja esta ocupada a oprimi-los, eles
normalmente alegam que a Velha e Maligna Igreja fez um trabalho tão bom
a oprimi-los que todas as pessoas passaram a ter medo de fazer ciência.
Quando eu lhes apresento uma lista de cientistas da Idade Média - tais como Albertus Magnus, Robert Grosseteste, Roger Bacon, John Peckham, Duns Scotus, Thomas Bradwardine, Walter Burley, William Heytesbury, Richard Swineshead, John Dumbleton, Richard de Wallingford, Nicholas Oresme, Jean Buridan e Nicolau of Cusa -
e lhes pergunto o porquê destes homens levarem a cabo a sua actividade
científica durante a Idade Média alegremente e sem terem sofrido
qualquer tipo de interferência por parte da Igreja, os meus adversários
frequentemente coçam as cabeças confusos sobre o que foi que correu mal.
A Origem dos Mitos
A forma como os mitos que deram origem "A Coisa Mais Errada de Sempre da Internet" surgiram
encontra-se bem documentada em vários livros em torno da história da
ciência. Mas Hannam inteligentemente lida com eles nas páginas iniciais
do seu livro visto que seria provável que eles viessem a formar uma
base que levasse muitos leitores do público geral a olhar com suspeição
para a ideia dos fundamentos Medievais da ciência moderna.
Uma
melange purulenta envolvendo a intolerância do Iluminismo, os ataques
anti-papistas feitos por Protestantes, o anti-clericalismo Francês, e a
arrogância Classicista, levou a que o período Medieval ficasse
caracterizado como uma era de atraso e superstição - o oposto do que a pessoa comum associa com a ciência e com a razão.
Hannam não só mostra como polemistas tais como Thomas Huxley, John William Draper, e Andrew Dickson White -
todos eles com o seu preconceito anti-Cristão - conseguiram moldar a
ainda presente ideia de que a Idade Média foi uma era vazia de ciência
e de conhecimento racional, como revela que só quando historiadores no
verdadeiro sentido do termo se incomodaram em colocar em causa os
polemistas através das obras de pioneiros na área, tais como Pierre Duhem, Lynn Thorndike, e o autor do meu livro sobre o astrolábio, Robert T. Gunther, que as distorções dos preconceituosos começaram a ser corrigidas através pesquisas fiáveis e vazias de preconceito .
Esse trabalho foi agora completado pela mais recente gama de modernos historiadores da ciência tais como David C. Lindberg, Ronald Numbers, e Edward Grant.
Na esfera académica pelo menos a "Tese do Conflicto" duma guerra
histórica entre a ciência e a teologia há muito que foi colocada à
parte.
É,
portanto, estranho que tantos dos meus amigos ateus se agarrem de forma
tão desesperada a uma posição há muito morta que só foi mantida por
polemistas amadores do século 19, em vez de se agarrarem às pesquisas
apuradas levadas a cabo por historiadores objectivos e actuais,
e que cujas obras foram alvo de revisão por pares. Este comportamento é
estranho especialmente quando o mesmo é levado a cabo por pessoas que
se intitulam de "racionalistas".
Falando
em racionalismo, o ponto crucial que o mito obscurece é precisamente o
quão racional a pesquisa intelectual foi durante a Idade Média. Embora
escritores tais como Charles Freeman continuem
a alegar que o Cristianismo matou o uso da razão, a realidade dos
factos é que graças ao encorajamento de pessoas tais como Clemente de
Alexandria e Agostinho em favor do uso da filosofia dos pagãos, e das
traduções das obras de lógica de Aristóteles, e de outros feitas, por
Boécio, a investigação racional foi uma das jóias intelectuais que
sobreviveu ao colapso catastrófico do Império Romano do Ocidente, e foi
preservada durante a assim-chamada Idade das Trevas.
O soberbo livro God and Reason in the Middle Ages de
Edward Grant detalha precisamente isto com um vigor característico, mas
nos seus primeiros 4 capítulos Hannam faz um bom resumo deste
elemento-chave. O que torna a versão histórica de Hannam mais acessível
do que a de Grant é que ele conta-a através das vidas das pessoas-chave
da altura - Gerbert de Aurillac, Anselmo, Guilherme de Conches,
Adelardo de Bath, etc.
Algumas
das pessoas que fizeram uma avaliação [inglês: "review] do livro de
Hannam qualificaram esta abordagem de um bocado confusa dado que o
enorme volume de nomes e mini-biografias podem fazer com que as pessoas
sintam que estão a aprender um bocado sobre um vasto número de pessoas.
Mas dada amplitude do tópico de Hannam, isto é francamente inevitável e
a abordagem semi-biográfica é claramente mais acessível que a pesada e
abstracta análise da evolução do pensamento Medieval.
Hannam
disponibiliza também um excelente resumo da Renascimento do Século 12
que, contrariando a percepção popular e contrariando "o Mito", foi
efectivamente o período durante o qual o conhecimento antigo invadiu a
Europa Ocidental. Longe de ter sido resistido pela Igreja, foram os
homens da Igreja que buscaram este conhecimento junto dos muçulmanos e
das Judeus da Espanha e da Sicília.
E longe de ter sido resistido e banido pela Igreja, o conhecimento foi absorvido e usado para formar a base do
programa de estudo dessa outra grande contribuição Medieval para o
mundo: as universidades que começavam a aparecer um pouco por todo o
mundo Cristão.
Deus e a Razão
O
encapsulamento da razão no centro da pesquisa, combinada com o influxo
do "novo" conhecimento Grego e Árabe, deu início a uma autêntica
explosão de actividade intelectual na Europa, começando no Século 12 e
avançando por aí em adiante. Foi como se o estímulo súbito de novas
perspectivas e as novas formas de olhar para o mundo tenham caído em
terreno fértil numa Europa que, pela primeira vez em séculos,
encontrava-se em paz relativa, era próspera, olhava para o exterior, e
era genuinamente curiosa.
Isto
não significa que as forças mais conservadoras e reaccionárias não
tenham tido dúvidas em relação às novas áreas de pesquisa,
especialmente em relação à forma como a filosofia e a especulação em
torno do mundo natural e em torno do cosmos poderia afectar a teologia
aceite. Hannam é cuidadoso para não fingir que não houve qualquer tipo
de resistência ao florescimento do novo pensamento e da investigação,
mas, ao contrário dos perpetuadores "do Mito", ele leva em consideração
essa resistência mas não a apresenta como tudo o que há para saber
sobre esse período.
De
facto, os esforços dos conservadores e dos reaccionários eram
normalmente acções de retaguarda e foram em quase todas as instâncias
infrutíferas nas suas tentativas de limitar a inevitável inundação de
ideias que começou a jorrar das universidades. Mal ela começou, ela foi
literalmente imparável.
De
facto, alguns dos esforços dos teólogos de colocar alguns limites ao
que poderia e não poderia ser aceite através do "novo conhecimento",
geraram como consequência o estímulo da investigação, e não a sua
constrição.
As "Condenações de 1277"
tentaram afirmar algumas coisas que não poderiam ser declaradas como
"filosoficamente verdadeiras", particularmente aquelas coisas que
colocavam limites à Omnipotência Divina. Isto teve o interessante
efeito de mostrar que Aristóteles havia, de facto feito alguns erros
graves - algo que Tomás de Aquinas havia colocado ênfase na sua altamente influente Summa Theologiae:
As condenações e a Summa Theologiae de
Aquinas haviam gerado um enquadramento dentro do qual os filósofos
naturais poderiam prosseguir os seus estudos em segurança, e esse
enquadramento havia estabelecido o princípio de que Deus havia
decretado as leis naturais mas que Ele não Se encontrava limitado pelas
mesmas. Finalmente, esse enquadramento declarou que Aristóteles esteve
por vezes errado. O mundo não era "eterno segundo a razão" e "finito segundo a fé". O mundo não era eterno. Ponto final.
E se Aristóteles poderia estar errado em algo que ele considerava certamente certo, isso colocava em dúvida toda a
sua filosofia. Estava assim aberto o caminho para que os filósofos
naturais da Idade Média avançassem de forma mais firme para além das
façanhas dos Gregos. (Hannam, pp 104-105)
E
foi exactamente isso que eles passaram a fazer. Longe de ser uma era
sombria e estagnada, tal como o foi a primeira metade do Período
Medieval (500-1000), o periodo que vai desde o ano 1000 até ao ano 1500
é, na verdade, o mais impressionante florescimento da pesquisa e da
investigação científica desde o tempo dos antigos Gregos, deixando
muito para trás as Eras Helénicas e Romanas em todos os aspectos.
Com
Occam e Duns Scotus a avançarem com a abordagem crítica aos trabalhos
de Aristóteles para além da abordagem mais cautelosa de Aquinas, estava
aberto o caminho para que os cientistas Medievais dos Séculos 14 e 15
questionassem, examinassem e testassem as perspectivas que os
tradutores dos Séculos 12 e 13 lhes haviam dado, e isto com efeitos
surpreendentes:
Durante
o século 14, os pensadores medievais começaram a reparar que havia algo
seriamente errado em todos os aspectos da filosofia Natural de
Aristóteles, e não só naqueles aspectos que contradiziam directamente a
Fé Cristã. Havia chegado o momento em que os estudiosos medievais
seriam capazes de começar a sua busca como forma de avançar o
conhecimento......enveredando por novas direcções que nem os Gregos
e nem os Árabes haviam explorado. O
seu primeiro avanço foi o de combinar as duas disciplinas da matemática
e da físicas duma forma que não havia sido feita no passado. (Hannam p. 174)
A
história deste avanço, e os espantosos estudiosos de Oxford que o
levaram a cabo e, desde logo, lançaram as bases da ciência genuína - os
"Calculadores de Merton" - muito provavelmente merece um livro
separado, mas o relato de Hannam certamente que lhes faz justiça e é
uma secção fascinante da sua obra.
Os nomes destes pioneiros do método científico - Thomas Bradwardine, William Heytesbury, John Dumbleton e
o deliciosamente nomeado Richard Swineshead - merecem ser conhecidos.
Infelizmente, a obscurecedora sombra "do Mito" significa que eles
continuam a ser ignorados ou desvalorizados até mesmo em histórias da
ciência recentes e populares. O resumo de Bradwardine do
discernimento-chave que estes homens trouxeram para a ciência é uma das
citações mais importantes da ciência inicial e ela merece ser
reconhecida como tal:
[A
matemática] é a reveladora da verdade genuína.....quem quer que tenha o
descaramento de estudar a física ao mesmo tempo que negligencia a
matemática, tem que saber desde o princípio que nunca entrará pelos
portais da sabedoria. (Citado por Hannam, p. 176)
Estes
homens não só foram os primeiros a aplicar de forma genuína a
matemática à física, como desenvolveram funções logarítmicas 300 anos
antes de John Napier, e o Teorema da Velocidade Média 200 anos antes de
Galileu. O facto de Napier e Galileu serem creditados por terem
descoberto coisas que os estudiosos Medievais já haviam desenvolvido é
mais um indicador da forma como "o Mito" tem distorcido a nossa
percepção da história da ciência.
Semelhantemente, a física e a astronomia de Jean Buridan e de Nicholas Oresme eram
radicais e profundas, mas de modo geral, desconhecidas para o leitor
comum. Buridan foi um dos primeiros a comparar os movimentos do cosmos
com os movimentos daquela que é outra inovação Medieval: o relógio. A
imagem dum universo a operar como um relógio, imagem essa que passou a
ser usada com sucesso pelos cientistas até aos dias de hoje, começou na
Idade Média.
E
as especulações de Oresme em relação a uma Terra em rotação mostra que
os estudiosos Medievais alegremente contemplavam ideias que (para eles)
eram razoalmente estranhas como forma de ver se funcionariam; Oresme
descobriu que esta ideia em especial na verdade funcionava muito bem.
Dificilmente
estes homens eram o resultado duma "idade das trevas" e as suas
carreiras estão conspicuamente livres de qualquer tipo de Inquisidores
e de ameaças de queimas tão amadas e sinistramente imaginadas pelos
fervorosos proponentes "do Mito".
Galileu, Inevitavelmente.
Tal
como dito em cima, nenhuma manifestação "do Mito" está completa se que
o Incidente de Galileu seja mencionado. Os proponentes da ideia de que
durante a Idade Média a Igreja sufocou a ciência e a racionalidade têm
que empurrá-lo para a linha da frente visto que, sem ele, eles não têm
exemplos da Igreja a perseguir alguém por motivos relacionados à
pesquisa do mundo natural.
A
ideia comum de que Galileu foi perseguido por estar certo em relação ao
heliocentrismo é uma total simplificação dum assunto complexo, e um que
ignora o facto do principal problema de Galileu não ser só que as suas
ideias estavam em desacordo com a interpretação das Escrituras, mas também em desacordo com a ciência dos seus dias.
Ao
contrário da forma como este assunto é normalmente caracterizado, nos
dias de Galileu o ponto principal era o facto das objecções científicas
ao heliocentrismo ainda serem suficientemente poderosas para impedirem
a sua aceitação.
Em 1616 o Cardeal Bellarmine deixou bem claro para Galileu que se aquelas objecções científicas pudessem
ser superadas, então as Escrituras poderiam e deveriam ser
reinterpretadas. Mas enquanto essas objecções se mantivessem, a Igreja,
compreensivelmente, dificilmente iria derrubar séculos de exegese em
favor duma teoria errónea. Galileu concordou em só ensinar o
heliocentrismo como um dispositivo de cálculo teórico, mas depois mudou
de ideia e, num estilo típico, ensinou-a como um facto. Isto causou a
que em 1633 ele fosse acusado pela Inquisição.
Hannam
disponibiliza o contexto para tudo isto com detalhe adequado numa
secção do livro que também explica a forma como o Humanismo do
"Renascimento" causou a que uma nova vaga de estudiosos não só tenha
buscado formas de idolatrar os antigos, mas também formas de voltar as
costas às façanhas de estudiosos mais recentes tais como Duns Scotus,
Bardwardine, Buridan, e Orseme.
Consequentemente,
muitas das suas descobertas e muitos dos seus avanços ou foram
ignorados, ou foram esquecidos (só para serem redescobertos
independentemente), ou foram desprezados mas silenciosamente
apropriados. O caso de Galileu usar o trabalho dos estudiosos Medievais
sem reconhecimento é suficientemente condenador.
Na
sua ânsia de rejeitar a "dialéctica" Medieval e emular os Gregos e os
Romanos - que, curiosamente, e de muitas formas, fez do "Renascimento"
um movimento conservador e retrógrado - eles rejeitaram
desenvolvimentos e avanços genuínos dos estudiosos Medievais. Que um
pensador do calibre Duns Scotus se tenha tornado primordialmente
conhecido como a etimologia da palavra "dunce" é profundamente irónico.
Por
melhor que seja a parte final do livro, e por mais valiosa que seja a
análise razoavelmente detalhada das realidades em torno do Incidente de
Galileu, tenho que dizer que os últimos 4 ou 5 capítulos do livro de
Hannam passam a ideia de terem falado de coisas que eram demasiado complicadas
de se "digerir". Eu fui capaz de seguir o seu argumento facilmente, mas
eu estou bem familiarizado com o material e com o argumento que ele
está a avançar.
Acredito
que para aqueles com esta ideia do "Renascimento", e para aqueles com a
ideia de que Galileu nada mais era que um mártir perseguido da ciência
e um génio, a parte final do livro pode avançar duma forma demasiado
rápida para eles entenderem. Afinal de contas, os mitos têm uma inércia
muito pesada.
Pelo
menos uma pessoa que reviu o livro parece ter achado o peso dessa
inércia demasiado dura para resistir, embora seja provável que ela
tenha a sua própria bagagem para carregar. Nina Power, escrevendo para a revista New Humanist, certamente que parece ter tido alguns problemas em deixar de parte a ideia da Igreja a perseguir os cientistas Medievais:
Só
porque a perseguição não era tão má como poderia ter sido, e só porque
alguns pensadores não eram as pessoas mais simpáticas do mundo, isso
não significa que interferir no seu trabalho ou banir os seus livros
era justificável nessa altura ou que seja justificável nos dias de hoje.
Bem, ninguém disse que era justificável; explicar como é que ela surgiu, e o porquê dela não ter sido
tão extensa como as pessoas pensam, e como ela não teve a natureza que
as pessoas pensam que teve, não é "justificar" nada, mas sim corrigir
um mal-entendido pseudo-histórico.
Dito isto, Power tem algo que parece ser a razão quando salienta que "A
caracterização de Hannam dos pensadores [do Renascimento] como
'reaccionários incorrigíveis' que 'quase conseguiram destruir 300 anos
de progresso na filosofia natural' está em oposição com a sua
caracterização mais cuidada daqueles que vieram antes." No entanto, isto não é porque a caracterização está errada, mas sim porque a dimensão e a extensão
do livro realmente não lhe dão espaço para fazer justiça a esta ideia
razoavelmente complexa, e, para muitos, radical. (...)
Deixando
isso de parte, este é um livro maravilhoso, e um antídoto acessível e
brilhante contra "o Mito". Ele deveria estar na lista de Natal de
qualquer Medievalista, estudioso da história da ciência, ou de qualquer
pessoa que tem um amigo equivocado que ainda pensa que as luzes da
Idade Média eram acesas queimando cientistas.