Crianças ouvem histórias baseadas em passagens da “Bíblia”, traduzida em dialetos locais: Deus é Mulungo, ou Muluko
Durante três dias, 120 mães e seus filhos participaram de um encontro de mulheres cristãs em Nampula, norte de Moçambique, em convivência com um grupo de 14 mulheres brasileiras. Haveria depois reunião semelhante em Dondo, na região central do país. As brasileiras eram missionárias, de diversas profissões, que em sua viagem de propagação do cristianismo, um percurso de duas semanas, dormiram e comeram nos lugares visitados, contaram histórias bíblicas, ensinaram trabalhos manuais e culinária, deram assistência odontológica, fizeram palestras sobre saúde, entre outras atividades. Muitas das moçambicanas tinham vindo de aldeias distantes até 200 quilômetros.
Naqueles mesmos dias, outros brasileiros, agentes de uma corrente missionária que tem crescido substancialmente nos últimos tempos, faziam trabalho semelhante em diversos países.
O Brasil já foi um grande receptor de estrangeiros que desembarcavam aqui para evangelizar e criar igrejas. Agora o movimento é inverso: o país é um dos que mais enviam missionários ao exterior, o que se explica pelo crescimento da população de evangélicos e pelo estímulo de igrejas e agências missionárias à formação desses agentes religiosos e internacionalização de seu trabalho. Hoje, o número de missionários brasileiros que levam o cristianismo a outros países só é superado pelo de americanos. No ano passado, os Estados Unidos tinham 127 mil pessoas pregando foram de suas fronteiras. Do Brasil haviam partido 34 mil. Nos dois casos, incluem-se evangélicos e católicos. São dados do “Atlas do Cristianismo Global”, editado pela Edinburgh University Press.
O crescimento da população de evangélicos é fator para a
presença marcante de brasileiros em missões no exterior
De acordo com Todd M. Johnson, um dos autores da publicação, o número de missionários brasileiros que foram trabalhar em outros países em 2010 corresponde a 188 por milhão de cristãos. A proporção da América Latina é de 107 e a global, de 184 por milhão de cristãos. Ou seja, o Brasil está acima da média mundial.
Em 2010, o Brasil tinha em seu território 20 mil missionários estrangeiros, ou 101 por milhão de brasileiros. Nesse caso, o número é menor que na América Latina, de 172 por milhão de moradores. Mas ainda é bem maior que a média global, de 58 por milhão de pessoas.
O casal Antonio e Sirley Silva é ligado à Junta de Missões Mundiais (JMM) da Convenção Batista Brasileira, instituição com 600 missionários em 58 países. Os dois são professores de teologia e lideram em Nampula um programa de educação pré-escolar, também aplicado em outros países, que atende perto de duas mil crianças, de quatro e cinco anos, e usa conteúdo baseado na “Bíblia”.
Se, em alguns países, há a necessidade de aprendizado de idiomas, em outros, como Moçambique, o português é um aliado. A brasileira Noêmia Cessito foi enviada pela JMM para o país africano há 27 anos, quando ainda se vivia uma guerra civil, encerrada em 1992. Casou-se com um pastor moçambicano, teve dois filhos e hoje mora em Dondo, onde realiza trabalhos de ação social, educação e evangelismo.
Com a creche Pequenas Sementes, que funciona no terreno da igreja, e a escola El Shaddai, ela atende 850 crianças, que, além de ensino, recebem uma refeição por dia (para muitas, o único alimento). Por meio de voluntários, os batistas de Dondo também apoiam diariamente 150 mulheres com aids (o país é um dos mais afetados pela doença). E, de segunda a sexta-feira, servem sopa a adultos e crianças internados no hospital que fica a duas quadras do templo.
Para Karina Bellotti, professora do departamento de história da Universidade Federal do Paraná, doutora em história cultural e com publicações na área de história das religiões, um dos lados positivos do trabalho missionário é justamente o estabelecimento de sistemas educacionais e de assistência à saúde, como ocorreu no Brasil, que possui escolas e hospitais ligados a instituições religiosas. Um dos lados negativos, segundo ela, “é que algumas dessas missões viam os colonos ou os brasileiros como sem religião, desconsiderando sua cultura ao querer catequizá-los”.
Não só a África ou países pobres têm sido alvo de missões de brasileiros. E nem só com sermões. Em julho, integrantes do grupo de teatro Oxigênio, da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba, embarcaram para Madri, na Espanha, e fizeram apresentações de rua e em igrejas para 4 mil pessoas em 21 dias. Até uma penitenciária de Madri entrou no roteiro.
O trabalho foi realizado em parceria com a agência Jovens com Uma Missão (Jocum), que é internacional (está em 180 países) e reúne representantes de várias igrejas. O ramo brasileiro da Jocum conta com 250 missionários em outros países.
Grupo teatral da Igreja Presbiteriana Central de Curitiba
fez seu trabalho missionário na Espanha, com várias apresentações
Em Dondo, o grupo ficou hospedado em uma casa que é usada por missionários americanos. A van 1990, usada nos deslocamentos para diferentes projetos desenvolvidos na cidade de 55 mil habitantes, foi conduzida por Ercílio Greva, moçambicano de 24 anos que se converteu ao cristianismo aos 17 e hoje estuda engenharia, é treinador de handebol e trabalha para uma ONG americana.
Algumas mulheres deram aulas de música, pintaram e redecoraram as salas da creche. Outras fizeram atendimento odontológico com um consultório portátil levado do Brasil e prepararam uma festa para os pequenos. As aulas de culinária das brasileiras encheram a cozinha construída no fundo do terreno da igreja.
Uma das alunas era Ana Paula, de 36 anos e mãe de oito filhos, sendo os dois últimos gêmeos de três meses de idade. Ela contou que queria “dar os bebês”, porque ficou viúva e não tem condições de criá-los. Em outras salas ou no quintal, as moçambicanas aprenderam a fazer fuxico (flores de tecido) e também bijuterias.
Sirley e Antonio Silva, casados, professores de teologia: dirigem em Nampula um programa de educação pré-escolar que atende perto de 2 mil crianças
O pastor Jerônimo Cessito, marido de Noêmia, que está cursando mestrado em educação, fez questão de mostrar a escola El Shaddai, aberta em 2006. Há mais espaço para a construção de salas, para hortas, um poço e uma capela, que ainda depende de recursos. “Uma coisa que aperta meu coração é a criança”, contou. “Se não fizermos nada, ela vai crescer do mesmo jeito. Se fizermos, poderá fazer diferença no país.”
As salas da escola eram de madeira, mas atraíam cobras e foram substituídas por tijolos. De madeira ficou apenas o lugar onde a cozinheira Francisca Fernandes prepara as refeições dos alunos. Ela mostrou um pacote com arroz enriquecido com soja, vegetais e temperos. “É da América”, disse. Uma igreja de Minnesota (EUA) doou 1 milhão de pacotes de 390 gramas cada um para os projetos desenvolvidos em Dondo.
Nas salas, as crianças usam camisetas de cor laranja enviadas por brasileiros. No pátio, brincam com parquinho construído por meio de doações. Mas a realidade continua sendo dura. Malária é algo comum lá. As pessoas dormem cobertas por véus, usam repelentes contra insetos e, mesmo assim, correm riscos.
Noêmia nunca passou um ano sem a doença. Ela mostrou o posto de saúde que atende duas mil pessoas e tem médico e enfermeiro cedidos pelo governo. Uma maca, quando encaixada em uma bicicleta, serve de ambulância.
Ali é um dos locais em que Juliana Mota, de 27 anos, nutricionista de São Paulo, vai fazer o acompanhamento do desenvolvimento das crianças. Ela chegou em julho e vai embora em dezembro. Marisa Ferreira, paulistana de 47 anos, é pedagoga e desembarcou no país para ficar um ano, já ficou cinco e não tem data para voltar. Na mesma vizinhança, a igreja está construindo uma padaria, onde um padeiro vindo do Rio de Janeiro vai passar três meses ensinando os moçambicanos a fazer pão.
Dondo é cortada pela ferrovia por onde começaram recentemente a transitar trens da Vale carregados de carvão. Com investimentos estrangeiros e melhoras na economia, ofertas de emprego estão aparecendo. “Há oportunidades, mas é preciso estar preparado”, disse a professora moçambicana Helena Reich. Ela é casada com Edmundo, também professor. Segundo ele, na região cada pessoa vive com o equivalente a US$ 1 por dia, ou cerca de 30 meticais, que é a moeda local.
Com a malária e a aids, há na região muitas viúvas, algumas infectadas com o vírus. Júlia Bola, de 40, perdeu o marido há dez anos para a malária e, atualmente, faz parte da equipe que realiza visitas a soropositivas. Tem quatro filhos, mas só ficou com dois, porque os outros foram morar na capital, Maputo, com a família do marido. Agustinho, 12, um dos filhos, abraçou as missionárias vestido com a camiseta do Brasil que ganhou na igreja. Ele dorme em uma esteira ao lado da mesa e sofre de tuberculose.
À noite, os adolescentes prepararam um culto típico de aldeia. Como faltou luz, usaram lamparinas com querosene. Depois de músicas e danças típicas, foi oferecido um jantar que é considerado banquete. As brasileiras comeram com as mãos, como é comum no país. No prato havia “shima,” (receita tradicional, feita com farinha de milho branco e água), além de arroz, molho de tomate, peixe e matapa (caldo de couve, mandioca e amendoim).
No domingo, foi programada visita a uma aldeia. O trajeto foi feito em três horas em asfalto com buracos e estrada de chão. No caminho, o motorista parou em uma vila para arrumar o freio da van. Um rapaz, que disse chamar-se Gaspar, chegou até a janela e perguntou o que as mulheres estavam fazendo. Uma disse que estava em uma missão e perguntou se ele conhecia Jesus. “Dizem que ele veio só para os brancos”, respondeu o rapaz. Enquanto a missionária mostrava trechos da “Bíblia” que dizem que ele “veio para todos”, apareceu outro jovem, para dizer que havia aceitado Jesus “como salvador pessoal”. Gaspar tomou a mesma decisão e ficou com a “Bíblia”.
Na aldeia, o grupo foi recepcionado com festa. Após culto e estudos em grupos, os participantes receberam doações dos pacotes de arroz enviados dos Estados Unidos. Em seguida, foi oferecido um almoço às visitantes. Sobre a mesa havia um roedor caçado no mato, em molho, arroz e pato assado.
Na aldeia não se fala português, mas o dialeto sena. Foi preciso usar tradutor na comunicação. No encontro de mulheres, em Nampula, muitas só sabiam o dialeto macua. Em sena, Deus é chamado de Mulungo. Em macua, é Muluko. A “Bíblia” foi traduzida para os dois dialetos.
“Na África, sem a igreja, o sofrimento seria maior”, afirma o padre Camilo Pauletti, diretor das Pontifícias Obras Missionárias (POM), que tem 52 anos e morou 6 em Moçambique. De acordo com ele, a atividade exercida lá “não era apenas de evangelização, mas de promoção humana”. O padre foi para ficar três anos e pediu para permanecer mais três. Teve 20 malárias. “Corri risco de morte duas vezes, mas quem vai para uma missão como essa sabe que corre riscos.” Sobre os dialetos e limitações, ele tem uma opinião: “Às vezes, não é preciso fazer muito, basta estar junto”. Pauletti foi mantido pela Igreja Católica do Rio Grande do Sul e por amigos. Ajudou a fazer 70 poços de água comunitários e batizou 7,2 mil pessoas, grande parte adultos. O padre planeja visitar o país em 2012.
Segundo levantamento do Conselho Missionário Nacional (Conima), da Igreja Católica, há 1.829 brasileiros da denominação que estudam ou trabalham no exterior e exercem atividades missionárias, a maioria mulheres (80%). Do total, 29,8% estão na África, 27,6% na América do Sul e 26,5% na Europa.
Na volta ao Brasil, as mulheres foram recebidas pela família e até uma pequena orquestra tocou no aeroporto de Curitiba no desembarque. Muitas já planejam o retorno à África.
Fonte: Jornal Valor Económico (reportagem de Marli Lima, De Dondo, Moçambique)
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